Indigenismo e Politica indigenista
O termo “indigenismo” voltou a ser recorrente nas discussões acerca das populações indígenas, no Brasil. Ele andou “meio” em desuso nas últimas décadas, talvez devido à decadência estrutural que vinham apresentando os organismos governamentais que cuidam da questão, pois o termo nasceu fortemente vinculado às políticas públicas voltadas para os povos indígenas, implementadas pelos países americanos, durante a realização do Io. Congresso Indigenista Interamericano, em Pátzcuara – México, em 1940, como veremos adiante.
Entendemos, entretanto, que o “indigenismo” é praticado desde os primeiros momentos históricos de contato dos europeus com as populações indígenas, no continente americano. No Brasil ele se inicia formalmente em 1548, quando Tomé de Souza, o primeiro “Governador Geral” do país, chega ao Brasil com os primeiros padres Jesuítas para realizar a catequese dos indígenas e edita o primeiro “Regimento” (“Regimento Tomé de Souza”, de 15.12.1548), que daria inicio a uma infindável cadeia de leis que regem a questão do relacionamento entre “brancos e índios”, desde esta época até os nossos dias, iniciando o que se convencionou posteriormente chamar de “política indigenista”. A partir daí, indigenismo e politica indigenista às vezes se confundem, uma vez que os personagens aliados da causa indígena ora militavam junto às instituições públicas, ora em confronto com elas, como ocorre até hoje., Apesar da violência que foram vítimas no processo de invasão de seus territórios, os povos indígenas sempre puderam contar com pessoas simpáticas às suas culturas e direitos, defendendo-os de alguma forma junto aos seus governos, mesmo correndo riscos, ao se interporem entre eles e as frentes de colonização. É justo assinalar que essa simpatia e aliança não correspondem necessariamente à compreensão e ao respeito irrestrito às culturas indígenas como elas são. Geralmente elas vêm acompanhadas de tentativas de que elas assimilem a ideologia capitalista e os valores religiosos desta “civilização”.
A evolução do indigenismo
O indigenismo, no entanto, como qualquer movimento ou ciência, também evoluiu. E a história tem mostrado que ele evoluiu sempre em direção a uma maior compreensão das culturas indígenas e ao respeito aos direitos de viverem em suas terras, segundo seus costumes, crenças e tradições como, aliás, está atualmente estabelecido na Constituição Federal brasileira e em outros documentos formais, inclusive tratados internacionais.
Entretanto, a questão indígena e indigenista é muito mais complexa do que simplesmente respeitar as tradições indígenas e os seus territórios. Ela leva os que lidam com ela diretamente a infindáveis indagações, sendo que muitas delas jamais terão respostas conclusivas, mesmo porque cada caso é um caso e são muitos “os casos”.
O que fazer p.e. a respeito dos impactos territoriais e culturais que foram causados a muitas dessas populações, desde os primeiros tempos de colonização? Como barrar, arrefecer ou mesmo adaptar o avanço das frentes de expansão capitalista, que jamais pararam desde o século XVI e que esbarram ainda hoje (inclusive) em territórios de povos que não mantêm contatos com a sociedade nacional? Como conciliar a preservação cultural com o avanço dos meios de comunicação e os naturais desejos de consumo e de conhecimento que demonstram hoje as novas gerações indígenas? Como proteger eficazmente os territórios indígenas e/ou instrumentalizar seus ocupantes para que eles próprios façam a gestão territorial e ambiental de suas terras? Como adaptar os mecanismos educacionais formais da sociedade envolvente, com os processos educacionais tradicionais das sociedades indígenas? Como preservar conhecimentos tradicionais importantíssimos para a humanidade e/ou fazer com que sejam respeitados e valorizados?
O momento histórico
Neste momento histórico, os povos indígenas sofrem intensos ataques a seus direitos, duramente conquistados na constituição de 1988, com apoio do indigenismo. Como no passado, as forças econômicas que sustentam os governos, pressionam seus poderes para que uma infinidade de Projetos de leis e PECs. sejam aprovadas, muitas das vezes colocando-as em votação inesperadamente, exigindo das populações indígenas e de seus aliados, permanente vigilância e capacidade de mobilização. Até quando, entretanto, resistirão?
Assim, novos desafios sempre se impõem aos povos indígenas e seus aliados. São desafios decorrentes de uma relação desigual, em termos populacionais e tecnológicos entre duas formas de civilização: a primeira, tribal, fechada, não-acumuladora, não-capitalista, sem propriedade privada, sem estado; a segunda, aberta, capitalista, acumuladora, estatizada, expansionista.
Esses desafios, atualmente, não são enfrentados apenas pelo poder governamental. Desde a década de setenta, organizações da sociedade civil (ONGs), organizações religiosas e as próprias organizações indígenas, atuam diretamente na questão indígena, nos campos político e prático, tentando criar mecanismos legais e metodologias que façam avançar a busca pelo equilíbrio de relações políticas e econômicas, entre a sociedade abrangente e os povos indígenas.
No passado, outros desafios se impuseram e foram enfrentados por instituições e pessoas simpáticas aos povos indígenas, fazendo com que essas populações subsistissem física e culturalmente, podendo hoje ser reconhecidas como civilizações diferenciadas entre si e da sociedade dominante. Enfim, de povos “sem lei, sem rei e sem alma”, como se acreditava no início da colonização, passaram a ser considerados povos que possuem organizações sociais e cosmovisões próprias, além de detentores de conhecimentos profundos dos ambientes que habitam.
A etimologia da palavra
O dicionário “Aurélio” da Língua Portuguesa, define assim os termos ligados ao tema:
- Indígena: (do latim indígena). Adj. 1. Originário de determinado país, região ou localidade; nativo 2. Bras. Relativo ou pertencente a índio ou aos índios. 3. Pessoa natural do lugar ou do país em que habitam; nativo*
- Indigenismo: (de indígena + ismo) S.m 1. Indigenato. 2. Doutrina formulada inicialmente no México, como parte do movimento intelectual nacionalista, caracterizado pela defesa e valorização das populações indígenas de um país, região, etc. 3. Bras. Conjunto de idéias propostas por organizações ou indivíduos ligados ao aparato estatal, relativas à situação das populações indígenas brasileiras e aos problemas que se apresentam quanto à sua incorporação ao “estado-nação”. 4. Conjunto de práticas ou políticas (estatais, institucionais, etc.), que derivam dessas idéias.
- Indigenista: (De Indígena + ista) Adj. 1. Relativo ao indigenismo. 2. Bras. Pessoa que atua junto às populações indígenas, especialmente em associação com políticas públicas e no que diz respeito à interação dessas populações com a sociedade mais abrangente.
- Índio: Adj. 1. V. indiano. 2. De ou pertencente ou relativo ao índio. S.m. 3. Indiano. 4. Indivíduo pertencente a qualquer um dos povos aborígenes das Américas. O dicionário ‘HOUAIS” da Língua Portuguesa registra ainda: “ A denominação vem do equívoco de Cristóvam Colombo, que ao tocar na ilha de Guana pensou ter chegado ás Índias”
O movimento indigenista
Em finais da década de 1930, existia um movimento continental na América Latina, em oposição à dominação dos países desenvolvidos. O México, após sua revolução, havia encontrado nas raízes indígenas as bases ideológicas de sua liberação nacional. Também outros países seguiam essa tendência. O problema “índio” estava em pauta em todo o continente. Na VIII Conferência Internacional Panamericana, reunida em Lima Perú, em 1938, houve uma resolução para que o Congresso Continental de Indianistas estudasse a conveniência de estabelecer um Instituto Indigenista Interamericano e, se fosse o caso, fizesse gestões para sua instalação. Dois anos mais tarde foi realizado o I° Congresso Indigenista Interamericano em Pástzcuaro – México, onde se formou uma comissão provisória para criação do I.I.I. – Instituto Indigenista Interamericano.
Em dezembro de 1940 se reúne a Convenção Internacional, onde os governos das repúblicas americanas reconhecem a importância do problema indígena e que é necessário estimular e coordenar a política indigenista a nível continental com a finalidade de melhorar a situação de vida dessas populações e que era necessária a cooperação entre os países para o alcance desses objetivos, por meio de reuniões periódicas (Congressos) e de um instituto. Acordam criar três órgãos indigenistas: Os Congressos Indigenistas Interamericanos, o Instituto Indigenista Interamericano e os Institutos Indigenistas Nacionais. Acordou-se que o instituto passaria a vigorar a partir da ratificação de cinco países.
Em 25 de março de 1942 o instituto foi formalmente constituído, ao se verificar a ratificação da convenção, de seis países: Equador, El Salvador, Estados Unidos, Honduras, México e Nicarágua. Posteriormente, outros países ratificaram a convenção e passaram a fazer parte da do instituto. O Brasil aderiu formalmente em 1954. Até 1972, apenas Cuba, Haiti e Uruguai não faziam parte do instituto.
A Declaração Solene dos Princípios Fundamentais, inclusa na Ata Final do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano – Páztcuara – México 1940 , estabeleceu:
- O respeito à personalidade e à cultura indígena;
- Rechaçar os procedimentos legislativos ou práticos que tenham origem em conceitos de diferenças raciais com tendências desfavoráveis à população indígena
- Igualdade de direitos e de oportunidades para todos os grupos da população americana;
- Respeito aos valores positivos da cultura indígena;
- Facilitar aos grupos indígenas sua elevação econômica e a assimilação e o aproveitamento dos recursos da técnica moderna e da cultura universal;
- Toda ação que se intente sobre a comunidade indígena deverá contar com a aceitação da comunidade.
O Iº Congresso, estabeleceu ainda a definição de Indigenista. Diz a resolução XLIV da Ata Final do Congresso: “ Indigenista é aquela pessoa que se dedica profissionalmente ao serviço dos assuntos indígenas.”
Em 1953 o Instituto Indigenista Interamericano tornou- se um organismo Técnico especializado, vinculado à OEA – Organização dos Estados Americanos.
A criação, o funcionamento e a realização dos Congressos do Instituto Indigenista Interamericano tiveram enorme importância na formulação de políticas públicas e no avanço da conscientização continental americana, quanto aos direitos originários dos povos indígenas. O organismo ainda existe, ligado à OEA, mas sem o prestígio que experimentou em seus primeiros tempos. Talvez isso tenha ocorrido exatamente pelo avanço que se verificou nos documentos constitucionais de todos os países da América Latina, desde a sua criação, esgotando de certa forma os objetivos a que se propõe.
Declaração de Barbados
Em finais da década de 1960, havia certa insatisfação sobre os desdobramentos políticos das ações do Instituto Indigenista Interamenricano e outras instituições, que resultou na “Declaração de Barbados” (link), assinada, entre outros, por Darcy Ribeiro, o único antropólogo, até hoje, que se auto intitulou abertamente como indigenista.
Verifica-se, portanto, que o termo “indigenista” (oriundo do latim “indígena” – nativo, do lugar), usado modernamente, surgiu de uma convergência de idéias e ideologias desenvolvidas no seio de governos da América Latina, que através de congressos e convenções e da criação de um organismo conjunto – o Instituto Indigenista Interamericano, passaram a discutir, definir e influenciar as legislações e práticas de seus respectivos países, quanto às suas relações com os povos indígenas. Há que se lembrar que, no Brasil, desde 1910 havia uma “corrente indigenista governamental”, comandada por Rondon.
Indigenismo pós-1970
No Brasil, a partir do início da década de 1970, o movimento foi absorvido pela sociedade civil, dando início à criação das “entidades alternativas indigenistas”, atualmente denominadas de Organizações Não-Governamentais (ONGs.) e pela Igreja Católica, com a criação do CIMI – Conselho indigenista Missionário. Essas organizações foram e continuam sendo de capital importância para o avanço da legislação e das práticas indigenistas, uma vez que pressionam o governo por essas conquistas e seguem apoiando o movimento indígena em suas reivindicações e mobilizações.
No início da década de 1980, começaram a aparecer as primeiras organizações representativas dos povos indígenas, convencionando-se chamá-las de “Organizações Indígenas” (link), que por sua vez, formam o “movimento indígena” (link). Esse movimento foi intensificado após a promulgação da constituição de 1988.
O indigenismo começa também a se disseminar no meio universitário e acadêmico, envolvendo professores e alunos das universidades brasileiras. A primeira iniciativa acadêmica nesta direção foi tomada pelo CDS – Centro de Desenvolvimento Sustentável da UNB – Universidade de Brasília, que promoveu em 2008 o “Iº Curso de Especialização em Indigenismo e Desenvolvimento Sustentável”, que por sua vez propiciou a criação do NEAI – Núcleo de Estudos e Ação Indigenista, também no âmbito do CDS. Atualmente a UNB ministra o curso “Mestrado Profissional junto a Povos e Comunidades Tradicionais” (link), derivado do primeiro. Atualmente, várias universidades oferecem cursos específicos para alunos indígenas, como os cursos de licenciatura intercultural, que formam professores indígenas sob a ótica da interculturalidade.
A instituição governamental que cuidava da questão indígena a té o ano de 1967 era o SPI – Serviço de Proteção aos Indios, criado pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, em 1910. Ao SPI sucedeu a FUNAI – Fundação Nacional do Indio. A Funai passou por grandes transformações, a partir da década de 1970. Tendo herdado uma estrutura falida e corrupta do SPI., que mais lesava do que defendia os interesses indígenas e que executava as operações de penetração do estado junto aos povos indígenas, transformou-se em uma instituição que defende prioritariamente os interesses indígenas. Isso foi possível devido a uma conjunção de fatores, que uniram as forças do movimento indigenista civil (ONGs.) e eclesiástico (CIMI), com um grupo de indigenistas combativos dos quadros da Funai. Gradativamente, o órgão ganhou a confiança dos povos indígenas e sociedade civil, ao ponto de defenderem hoje, ferrenhamente, a sua permanência.
A Funai – Fundação Nacional do índio
Até 1992, a Funai era hegemônica no trato da questão indígena. A partir daí, por vários decretos e outros documentos, a responsabilidade do atendimento à saúde indígena foi repassado à FUNASA, que por sua vez repassou a responsabilidade à SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena, no Ministério da Saúde. Igualmente, a responsabilidade da educação formal (leia-se “escolas públicas” nas aldeias) foi repassado ao Ministério da Educação que, por sua vez repassa as verbas para as secretarias estaduais de educação.
As principais missões institucionais da Funai, atualmente, são a demarcação e a proteção das Terras Indígenas, a emissão de pareceres etno-ambientais em obras de infraestrutura que atinjam terras indígenas e o encaminhamento de benefícios sociais dos indígenas. Não é pouco. As terras indígenas representam cerca de 13% do território brasileiro, sendo mais de 90% na Amazônia. É um imenso patrimônio ambiental e étnico a ser preservado. Quanto aos licenciamentos ambientais sempre provocam grandes polêmicas, pois os indígenas, por princípios culturais e ideológicos, são contrários a qualquer obra que destrua a natureza.
Conclusões
O movimento indigenista permanece vivo e atuante no Brasil, apesar de algumas correntes tentarem afirmar que ele não tem mais sentido, pois os próprios indígenas estão se capacitando para promover a interação de suas comunidades com a sociedade geral. Esta afirmação é verdadeira, para isso trabalhou e ainda atua o indigenismo, cuja bandeira pós-1970 era a “autodeterminação dos povos indígenas”.
Os profissionais do indigenismo de todas as correntes, no entanto, continuam a assessorar os povos indígenas em seus projetos comunitários, a apoiar a mobilização para reivindicação de direitos, procurando desenvolver técnicas adaptadas de produção e geração de renda, procurando soluções para aplicação de compensações etnoambientais, prestando assessorias jurídicas, capacitando e instrumentalizando indígenas em gestões de entidades formais, procurando adaptar a educação formal às culturas locais, realizando estudos para demarcação de terras indígenas, fazendo levantamentos fundiários de ocupantes de terras indígenas e suas retiradas, participando de licenciamentos etnoambientais, sendo esses últimos de competência exclusiva do estado, via Funai.
O que podemos afirmar é que o indigenismo no Brasil já esteve à frente dos povos indígenas (até a década de 1970), depois atuou junto a eles e agora permanece mais à retaguarda do movimento indígena, composto por suas representações formais.
Na medida em que os povos indígenas assumem os papéis sociais, antes destinados ao indigenismo, deve o movimento, agora, voltar-se para o interior da nossa própria sociedade, informando-a sobre as culturas e realidades indígenas. Isto já está acontecendo, de forma natural. Atualmente, a Lei 11.645, que torna obrigatório o ensino das histórias e culturas indígenas e afrodescendentes no ensino fundamental e médio, tem motivado muitos indigenistas a atuarem nesse campo.
O que deve ser entendido é que o movimento indigenista é formado por pessoas não-indígenas, simpáticos e aliados dos povos nativos. O movimento indígena, por sua vez, é composto por entidades estritamente indígenas. Os dois estão umbilicalmente ligados, não há como separar.