Uma das coisas que sempre ouvi dos líderes indígenas nas aldeias (Warodi, Penon, Raoni, Pohi, Tep’yêt e outros) e que incorporei ao meu modo de viver é: “Não queremos dinheiro, riquezas e poder. Isso não foi feito para nós. Só queremos respeito!”
Com referência à crise que se instalou na FUNAI com a edição do Decreto nº 7.056 de 28.12.2009, dou abaixo meu depoimento pessoal sobre o assunto, na intenção, sobretudo, de dar contribuição para uma possível saída do impasse:
Ingressei na FUNAI como Técnico Indigenista no ano de 1975, após ter prestado concurso público, frequentado curso teórico de três meses e cumprido três meses de estágio em Terra Indígena. Logo após a contratação fui enviado para exercer a função de Chefe do Posto Indígena Kayabi, localizado no Alto Tapajós, no Estado do Pará.
Atuei também entre os Xavantes, no Posto Indígena Pimentel Barbosa e entre as etnias do atual estado do Tocantins, especialmente os Krahôs. Em missões eventuais, atuei em várias partes do país. Exerço, portanto, o indigenismo há 35 anos.
Fiz parte de um grupo de indigenistas da FUNAI que lutou ferrenhamente contra a forma invasiva e autoritária que o órgão atuava nas aldeias indígenas, aliando autoritarismo com política indigenista ainda nos moldes do último quartel do Serviço de Proteção ao Índio – SPI.
Lutamos também contra a corrupção praticada no órgão pelos dirigentes militares, principalmente com relação a fraudes em demarcação de terras e recursos da renda indígena. Na área administrativa enfrentamos uma turma de burocratas aliada dos militares, ligadas a uma loja Maçônica, que agia nas sombras, facilitando os trâmites burocráticos da corrupção.
Ajudamos a demarcar milhões de hectares de terras indígenas, na maioria das vezes, enfrentando graves e perigosos conflitos que colocavam em risco nossas vidas e de nossas famílias. Lutamos contra a prática de transferir (desterrar) povos indígenas para dar passagem a obras governamentais.
Mudamos, com nossas ações e discussões a forma como o órgão agia na questão dos povos indígenas isolados, atraindo-os com bugigangas, com objetivo de “reduzi-los” e dar passagem ao “progresso”. Com o conjunto de nossas ações internas, portanto, conseguimos transformar um órgão público corrupto, autoritário e instrumento de fortes interesses econômicos, em uma instituição que defende prioritariamente os interesses dos povos indígenas.
Não é por acaso que a FUNAI merece atualmente a confiança dessas comunidades, mesmo estando defasada política e estruturalmente. Por nossas ações, fomos várias vezes demitidos, perseguidos, vigiados e proibidos de ingressar em terras indígenas. Interpretamos que somente não fomos presos em algumas ocasiões na década de 1980 porque o regime militar havia prendido o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, hoje presidente da república, e isso havia contribuído para que sua liderança e influencia aumentasse. Somos, portanto, contemporâneos de pessoas e participantes de movimentos que lutaram contra a ditadura militar e ajudaram a instalar a democracia neste país.
Reconhecemos que várias Organizações Não Governamentais Indigenistas e indígenas contribuíram enormemente para o melhoramento da FUNAI, com suas denúncias, mobilizações de lideranças e pressões políticas.
Praticamente todos os indigenistas combativos da FUNAI foram aliados dessas organizações, realizando em conjunto com elas inúmeras ações no campo e nas cidades. Particularmente, penso que qualquer gestor da política indigenista brasileira terá que forçosamente reconhecer a importância histórica dessas agremiações (incluindo o Conselho Indigenista Missionário – CIMI) e articular-se com elas.
Entretanto, algumas transformações positivas da FUNAI e da política indigenista foram conquistadas exclusivamente pela árdua luta dos indigenistas internos. Não me consta p.e. que algum integrante de ONGs. indigenistas tenha sido perseguido pelo regime militar. Na prática, poderíamos dizer que as ONGs. são muito articuladas politicamente e que os servidores da Funai são especialistas técnicos.
Fomos anistiados a partir do início da década de 1990, retornando definitivamente aos quadros da FUNAI. Imbuídos da certeza de que a “guerra” havia acabado, dirigimos nossas ações para as tentativas de aperfeiçoamento das práticas indigenistas em campo, desenvolvendo técnicas e programas adaptados aos novos tempos.
Apoiamos e contribuímos para a fundação e desenvolvimento de várias organizações indígenas em todo o país. Iniciamos um processo de recuperação de sementes e técnicas tradicionais de plantios indígenas, que tem possibilitado a melhoria da segurança alimentar de inúmeras etnias e introduziu no país a questão da preservação da agrobiodiversidade nativa.
Arquitetos e engenheiros indigenistas desenvolveram conceitos, técnicas e tecnologias modernas para habitações indígenas, centros de cultura e prédios públicos em aldeias. Desenvolvemos estratégias de proteção e controle territorial das Terras Indígenas e de promoção e preservação das culturas indígenas.
Engenheiros Florestais, agrônomos e outros profissionais indigenistas desenvolveram estratégias para a condução e aplicação das “compensações etno-ambientais” de grandes empreendimentos que afetam Terras Indígenas.
Ao mesmo tempo discutíamos a modernização administrativa do órgão, gestado ainda em regime ditatorial. Em meados da década de 1990, promovemos assembleias e seminários em todo o país para consultas aos servidores e indígenas, sobre as melhores formas de atualizar a política indigenista governamental. Vários dossiês e documentos foram elaborados como frutos desses movimentos internos.
Havia consenso de que a reestruturação administrativa era necessária, mas ela ia em direção a um novo conceito de indigenismo, baseado no que chamávamos de “diplomacia intercultural interna”. Sonhávamos com uma FUNAI que funcionasse mais ou menos nos moldes do Ministério das Relações Exteriores (chegava-se a sugerir, nessas discussões, a mudança do nome do órgão para Ministério das Relações Interiores).
Por esse conceito seriam reconhecidas a etnicidade e a territorialidade dos povos indígenas, dividindo as unidades administrativas por “territórios étnicos”, juntando várias etnias co-irmãs que sofreram um processo de diáspora, durante o contato com a sociedade brasileira. Igualmente, as diretorias e demais unidades da sede seriam especializadas nesses “territórios”.
Tudo seria baseado na perspectiva filosófica da DIPLOMACIA, prevendo-se, inclusive, cursos específicos na Escola de Diplomacia Rio Branco. Sempre tivemos a intenção de reeditar a realização dos cursos Técnicos Indigenistas, em níveis básico, técnico e superior e submetê-los aos servidores antigos e novos contratados, obviamente atualizando-os às mudanças políticas e culturais dos últimos tempos.
Jamais conseguimos ir adiante com as propostas, pelas sucessivas crises e mudanças de direção que o órgão sofria. Ao contrário, presenciávamos a cada dia a decadência político-administrativa da instituição, cujo orçamento diminuía ano a ano.
Desde meados da década de 1980, os funcionários da FUNAI, do presidente aos mais humildes servidores, enfrentaram inúmeras invasões das sedes do órgão por grupos indígenas, nunca abandonando, entretanto a via da diplomacia e do diálogo para contornar esses impasses.
Em 2002 a situação no órgão era de caos absoluto. Dezenas de indígenas ocupavam de forma permanente as pensões na Av. W-3 norte em Brasília e centenas de outros acorriam a Brasília cotidianamente. Muitos desses grupos chegavam armados de bordunas, facas e armas-de-fogo, pressionando a FUNAI por mais recursos.
Na maioria das vezes esses indígenas eram induzidos e até financiados por administradores regionais, que também tinham interesse nas verbas. Os recursos eram “repartidos” de acordo com a lei do mais forte: levava mais quem ameaçava mais.
No primeiro mandato do presidente Lula, assumiu a presidência da FUNAI o indigenista Eduardo Almeida. Iniciou-se então um novo ciclo, conduzido pelos indigensitas da casa, de moralização e correção das distorções administrativas do órgão.
As pensões foram desativadas e para hospedagem dos indígenas, inaugurou-se uma casa de trânsito em Sobradinho-DF.; realizou-se o primeiro seminário para consulta de servidores e lideranças indígenas para a construção de uma nova política indigenista. Iniciou-se também, efetivamente, o processo de elaboração de um Plano de Cargos e Salários e justificativas para a convocação de um concurso público para a instituição. Enquanto isso, continuava o processo de discussão interna para a sua reestruturação administrativa.
Mércio Gomes, sucessor de Eduardo Almeida, deu continuidade ao processo de correção das distorções do órgão, criando critérios e procedimentos para o deslocamento de indígenas a Brasília e descentralização de recursos; ampliou a discussão da política indigenista, realizando a I Conferência Nacional dos Povos indígenas, além de dar continuidade ao processo de aprovação do Plano de Cargos e Salários, reestruturação administrativa e concurso público. Implantou ainda o “Centro de Formação Indigenista Orlando Villas-Boas”, que deveria reciclar e formar novos profissionais do indigenismo, sob bases modernas.
Marcio Meira, que assumiu a FUNAI no início do segundo mandato deste governo, também entrou prometendo esforços para reestruturá-lo administrativamente, implantar um Plano de Cargos e Salários e realizar concurso público. Seria a esperada continuidade de ações que devem permear todo o governo. Meira, entretanto, trouxe com ele uma equipe administrativa totalmente estranha aos quadros da FUNAI, composta, em sua maioria, por pessoas ligadas às ONGs indigenistas.
Exonerou de imediato antigos indigenistas da casa e a outros colocou na “geladeira”. Iniciou-se então um processo de discussões internas quase secreto, para reestruturação do órgão. Vazava-se apenas a informação, desde 2008, que “neste ano a reestruturação sai”. Nós, indigenistas antigos e conhecedores das particularidades e das logísticas regionais e há anos empenhados nos mesmos objetivos que havíamos participado das primeiras fases das propostas, esperávamos a todo o momento que fôssemos chamados para contribuir de alguma forma com a discussão.
Imaginávamos também que alguma forma de discussão seria feita com as sociedades indígenas, ao menos no âmbito da CNPI – a Comissão Nacional de Política Indigenista, criada pelo próprio Meira.
Mas, nada! Os relatos da “rádio corredor”, a única que transmitia pelo menos os boatos sobre a tal reestruturação, davam conta de situações de humilhação dos funcionários da casa. Relatava-se fatos de coordenação de reuniões de diretores e coordenadores internos por dirigentes de ONGs, ocasiões em que funcionários da casa eram literalmente expulsos da sala, num total desrespeito e promiscuidade entre o público e o privado. Isso foi criando um clima de surda revolta entre os servidores em Brasília, que se difundia para as regionais.
De qualquer maneira, todos os funcionários e indígenas aguardavam as novidades. Quando elas vieram, sob a forma do decreto, centenas deles ficaram sabendo, do dia para a noite, que teriam que se transferir compulsoriamente para outros locais ou abandonarem a instituição.
Ao mesmo tempo, milhares de indígenas também ficaram sabendo que as unidades regionais que os serviam, muitas delas implantadas após duras batalhas, foram transferidas de lugar sem terem sido informados antecipadamente. Apesar de não possuírem uma organização representativa forte, os indigenistas e os servidores da Funai, de modo geral, são grandes amigos e aliados das lideranças indígenas tradicionais, as que moram efetivamente nas aldeias e que, em última instancia, defendem os interesses de seus povos.
Só poderia dar em revolta.
Agora, a coisa está feita. De fato, alguns princípios do decreto vão ao encontro ao que se discutia na instituição. É a questão, por exemplo, de retirar os Postos Indígenas das aldeias em algumas regiões e implantá-los nas cidades próximas. Isso já estava há anos sendo discutido internamente e, em alguns locais, exercitado.
Interessante também a criação dos Comitês Regionais, com participação indígena. Super-dimensionar algumas Coordenações Regionais, entretanto, seria reeditar as “superintendências”, que já foi testada e não deu certo no passado. Acabam ficando “inchadas”, longe das Terras Indígenas, com o pessoal técnico com dificuldades de alcançar as aldeias, por falta de transporte, combustível, diárias, etc.
Enfim, pessoalmente, penso que não é acertado lutar pela revogação integral do decreto, já que foi tão difícil e demorado que ele fosse editado e publicado. Seria o caso, talvez, de se propor uma discussão ampla, em níveis regionais e nacional, com o objetivo de ajustá-lo. Tem-se justificado a elaboração do decreto sem discussões com os povos indígenas porque “os interesses indígenas com relação à Funai são conflitantes”.
Ora, onde não existem interesses conflitantes no cenário político de qualquer país? Se isso justificar a tomada de decisões unilaterais, voltamos automaticamente ao autoritarismo. Esse é o ponto. Para uma geração que lutou ferrenhamente contra a ditadura, é difícil “engolir” determinadas maneiras de fazer as coisas.
Uma das coisas que sempre ouvi dos líderes indígenas nas aldeias (Warodi, Penon, Atorkà, Raoni, Pohi, Tep’yêt e outros) e que incorporei à minha maneira de viver é: “Não queremos dinheiro, riqueza e poder. Isso não foi feito para nós. Só queremos respeito!”.
Acredito que se houver o reconhecimento do governo de que houve equívocos políticos, técnicos, administrativos, culturais e logísticos na condução desse processo e, se os funcionários da Funai e lideranças indígenas tradicionais forem respeitados, ainda que tardiamente, poderão colaborar no processo de discussões para ajustes do decreto. Caso contrário, prevejo que será muito difícil que ele seja efetivado. Afinal, não estamos mais em 1964.
Conto detalhadamente episódios da luta indigenista que comentei neste texto nos livros “DE LONGE TODA SERRA É AZUL – HISTÓRIAS DE UM INDIGENISTA” e “DIÁRIO DE CAMPO 2008/2009”.