Como se estivesse saindo de um túnel do tempo, completo 40 anos de indigenismo. Não é fácil rememorar detalhes de um tempo relativamente tão longo, mas é possível fazer uma reflexão sobre o que de importante aconteceu neste período. Pessoalmente sinto-me um grande privilegiado pela oportunidade de conviver com pessoas e povos tão diferenciados, que marcaram não somente os fatos mais importantes da minha vida, mas a própria maneira de encará-la. Hoje reconheço, modestamente, que é preciso ter força e equilíbrio para conviver estreitamente com povos que não perderam a relação com a natureza, a espiritualidade e a essência da convivência humana.
Também sinto enorme satisfação por ter a oportunidade de participar e tentar evoluir uma “escola” fundada e desenvolvida por grandes humanistas práticos, como Rondon, Darcy Ribeiro, Noel Nutels e os irmãos Villas-Boas, entre inúmeros outros.
Politicamente, me vejo, aos 22 anos, tentando entender e não me decepcionar com a relação desigual que o governo a nossa sociedade tratava as populações indígenas. Optei por lutar contra o que presenciava, desafiando, dentro de suas próprias entranhas, a ditadura militar. Vejo comigo outros colegas que fizeram a mesma opção e instituições da sociedade civil que resistiram, nesta mesma senda, até os dias de hoje. Para isto foi preciso forjar uma sólida aliança com as populações indígenas, cuja maioria não conseguia mais perceber a grande armadilha na qual os haviam prendido.
Nossa bandeira comum era a “autodeterminação dos povos indígenas”, coisa impensável até então. Penso que conseguimos, razoavelmente, alcançar essa verdadeira “utopia”, apesar de reconhecermos que um longo caminho ainda precisa ser percorrido para que os povos indígenas alcancem a verdadeira liberdade. Sinto, ainda, que demos nossa contribuição para a preservação da natureza, ao lutar com os povos indígenas pela demarcação de milhões de hectares de terras, que eles, sabidamente, sempre preservaram. Em extensão, sinto que também contribuímos com a preservação da cultura universal, com a qual também sempre contribuíram.
O indigenismo não morreu. Temos um longo trabalho pela frente. Se os povos indígenas estão alcançando razoável autonomia política e estão se preparando tecnicamente, por ação do indigenismo, precisamos agora voltar nossos olhos para a nossa própria sociedade e prepará-la para um relacionamento equilibrado com as sociedades indígenas, além de vigiar para que os direitos indígenas, duramente conquistados, sejam respeitados.
Como preparação e conscientização da sociedade nacional, computo, desde a formação básica, técnica e superior indigenista, de milhares de professores e agentes de saúde não-indígenas que trabalham nas aldeias, das centenas de outros agentes públicos federais, estaduais e municipais, como procuradores, juízes, policiais federais, secretários de governo, agentes indigenistas da Funai, entre outros, até a divulgação eficiente e constante da imensurável herança genética e cultural legada pelos povos indígenas à nossa sociedade.
Temos que trabalhar também para a melhoria das legislações ordinárias que impedem que os povos indígenas tenham acessos a benefícios básicos, como estradas, moradias adaptadas e outros programas. Penso que devemos elaborar e executar as politicas públicas sempre em estreita aliança com organizações indígenas e indigenistas, mas entendendo que essas políticas são de responsabilidade do governo e de toda a sociedade brasileira.
Preocupa-nos imensamente, no momento, a questão do atendimento à saúde indígena. O que está se praticando nas aldeias, no momento, em nome desta política, beira o crime de lesa-humanidade, pois está ceifando não somente vidas, mas também os conhecimentos indígenas, ao não respeitar, minimamente, os costumes locais. Outras políticas públicas têm tentado se adaptar às novas regras institucionais, mas nada evoluiu na questão da saúde.
O mestre indiano Krisnamurti, em seu livro “Humanismo Universal” escreveu (citando de memória): “Qualquer movimento humanístico que não possua uma base ética fortemente ancorada, tende a se perder e se dispersar, ou até mesmo voltar-se contra seus próprios objetivos”
Pois, no Brasil, temos uma forte âncora ética no indigenismo, na figura de Cândido Mariano da Silva Rondon. As políticas tornam-se ultrapassadas, a ética é permanente e evolui. Nós, indigenistas da década de setenta, de todos os matizes, sustentamos e evoluímos essa ética, ao atuarmos contra a forma extremamente autoritária e intervencionista com que o estado tratava a questão indígena. Todos empunhamos a bandeira da “autodeterminação dos povos indígenas”. Penso que todos devemos nos unir, agora, pela bandeira da “conscientização da sociedade nacional”.
Não há, portanto, nenhuma razão para não enaltecer a figura de Rondon e seus seguidores, se nós, indigenistas, falamos constantemente para os indígenas que eles devem se apoiar nos ensinamentos dos mais velhos e dos grandes mestres do passado.
Particularmente, deixarei agora a “escola” sobre a qual me referi, confiando que outros integrantes mais jovens a farão evoluir. Sinto, entretanto, que jamais abandonarei o indigenismo que, para mim, se traduz em aliança incondicional e definitiva com os povos indígenas. Tentarei trilhar outros caminhos que também busquem o respeito, a liberdade e a preservação das vidas e das culturas indígenas, porque isto, simplesmente, já faz parte da minha alma.