Fernando Schiavini
Sem alma, sem Lei e sem Rei
Os brasileiros são confusos em relação aos povos indígenas. Lendas contadas desde o início da colonização, contam sobre a ferocidade dos índios, as histórias das bisavós pegas a laço, das caçadas com cachorros a bandos de indígenas dispersos e errantes, como se onças fossem.
“Sem alma, sem Lei e sem Rei”, foi o primeiro salvo conduto político-religioso do poder europeu para massacrar, sem piedade, os povos tribais das Américas. Escravizados, catequisados, dispersos, escondidos, perdidos pelas matas, fazendas e vilas do interior, sem mato para caçar ou fazer roça, passaram a ser considerados indolentes e outras pechas preconceituosas.
A Orfandade
Em 1831, José Bonifácio de Andrada e Silva, como tutor de D. Pedro II, instituiu a figura da orfandade dos indígenas, com o intuito de protege-los minimamente da sanha assassina dos senhores de terras. Mais adiante, pelo Código Civil de 1916, eles foram considerados “relativamente incapazes a certos atos da vida civil” e passaram a ser tutelados pelo estado brasileiro. Isso teve o seu lado positivo, ao responsabilizar diretamente o estado, a partir de 1910, pela demarcação e proteção das terras, das vidas e dos direitos indígenas, verdadeira doutrina desenvolvida por Cândido Mariano da Silva Rondon – o Marechal Rondon, à frente do SPI – Serviço de Proteção aos Indios. Devido, entretanto, às distorções do conceito da relativa incapacidade dos indígenas, pela prática governamental, passou-se à sociedade, no decorrer de décadas, a ideia da total incapacidade deles. Daí, foram tachados de crianças.
O Romantismo
No meio do caminho ocorreu um episódio histórico bastante interessante para a história do povo brasileiro, que serviu para cunhar os indígenas vários outros adjetivos, esses aparentemente positivos: Em meados do século XIX, os intelectuais brasileiros estavam à procura de um herói nacional, após a revolução mexicana, que revelou o valor do povo nativo. Eles não queriam heróis europeus, ainda calcados na era medieval. Quanto aos descendentes de africanos, eram forasteiros e escravizados. Elegeram então o indígena como esse herói. O expoente dos escritores do indianismo romântico foi José de Alencar. Sem jamais ter visto um indígena à sua frente, concebeu-o à imagem da perfeição, da beleza, da coragem e da paixão amorosa. Enquanto a elite, no entanto, se deleitava com os romances publicados pelos escritores indianistas, ocorriam massacres desenfreados no interior do país, após o poder imperial instituir, em 1850, a famigerada Lei de Terras, que desalojou milhares de indígenas e pequenos agricultores, lançando-os à miséria, à perseguição e à morte.
O Estado Brasileiro
Desde o início do atendimento aos povos indígenas diretamente pelo estado brasileiro, iniciado pelo SPI – Serviço de Proteção aos Indios, depois substituída pela FUNAI em 1967, firmou-se a mentalidade na população brasileira, de que os indígenas são considerados crianças, incapazes e, por isso, recebem tudo do governo, inclusive comida. Cansado de escutar e responder, com a máxima paciência possível, às pessoas que me abordam sobre esses temas, resolvi desenvolver um quadro de Mitos e Realidades sobre os indígenas e suas comunidades, após cerca de 45 anos de prática indigenista.
MITOS
Sem Alma, sem Lei e Sem Rei
REALIDADES
Devido à forte resistência indígena ao avanço colonizador em algumas regiões, essa expressão foi disseminada como um salvo conduto para o extermínio de milhares de indígenas e a aniquilação de suas etnias. Se os indígenas não se submetiam pela catequese oferecida pelos padres Jesuítas, o Papa lhes decretava guerras justas. Só tinham alma aqueles que eram batizados e se submetiam à catequese u à escravidão. .
Como os indígenas eram ágrafos, os colonizadores interpretaram que também não tinham regras sociais, ou seja, não tinham leis. Como eram (são) tribais, também não possuem estado (nem reinados, como no século XVI), então não tinham Rei.
Os indígenas possuem suas crenças e exercitam sua espiritualidade; organizam-se segundo regras e costumes milenares e possuem seus líderes, como quaisquer outras sociedades.
MITOS
Feroz e violento
REALIDADES
Fala-se muito da ferocidade dos indígenas, mas os primeiros colonizadores eram muito mais violentos do que eles. Ao atacarem as aldeias para escravizar os homens, matavam sem piedade mulheres e crianças, com requintes de tortura
Obviamente os indígenas tinham que se defender das invasões de suas terras, devolvendo a violência que recebiam. Eles tinham os seus guerreiros que também atacavam. Na intimidade, entretanto, os indígenas são pacíficos e hospitaleiros, repartindo com todos o pouco que possam ter. Possuem a simplicidade e a paz das pessoas criadas em íntima comunhão com a natureza.
MITOS
Indolente e preguiçoso
REALIDADES
O indígena, quando integrado à sua comunidade e ao seu modo de vida original, nada tem de preguiçoso. Ele luta diariamente pela subsistência de sua família, além de dividir sua produção com outras famílias. O que não existe nas sociedades tribais é o conceito de acumulação, mesmo de alimentos. Assim, se as necessidades básicas estão garantidas, não há porque ficar trabalhando incessantemente.
MITOS
Incapaz
REALIDADES
Não existe nenhuma incapacidade no indígena, em relação ao não indígena. A mesma capacidade que tem um físico ou um engenheiro químico em desenvolver e decorar milhares de fórmulas, tem uma pessoa indígena que, para sobreviver precisa conhecer e aprender o nome de milhares de plantas, insetos e animais e seus respectivos hábitos, épocas de floração e frutificação das plantas; a fórmulas medicamentosas, a fabricar instrumentos utilitários e ritualísticos, a construir moradias, conhecer a qualidade dos solos, plantar, interpretar o movimento dos astros e aprender centenas de histórias, cantigas e rituais de sua etnia.
Os indígenas vem provando, a cada dia mais, que não são, absolutamente, incapazes. Atualmente, milhares se formam nas universidades, cursam mestrados e doutorados, candidatam-se a cargos eletivos, viajam pelo mundo defesa de suas lutas, apresentam-se culturalmente no mundo inteiro, buscam executar projetos de subsistência em suas terras, entre outras atividades.
MITOS
Forte, corajoso e amoroso
REALIDADES
Os indígenas, vivendo em seus habitat naturais, sem pressões externas, são realmente fortes e treinados para serem corajosos e defenderem seus povos e seus territórios. É também amoroso com sua família. Os indígenas, entretanto, não possuem a cultura do amor romântico. Geralmente os casamentos são combinados desde a infância entre as famílias. Isso ocorre para se evitar os cruzamentos consanguíneos, em uma sociedade fechada.
Após o contato com as frentes de colonização, as desgraças começam: doenças desconhecidas, diminuição das terras, da caça e da coleta, enfraquecimento físico. Mas, geralmente, as pessoas, principalmente de centros urbanos, continuam pensando nos indígenas ainda fortes e vivendo em paraísos terrestres, pois a mídia continua alimentando a visão romântica, desde José de Alencar.
Os indígenas vem provando, a cada dia mais, que não são, absolutamente, incapazes. Atualmente, milhares se formam nas universidades, cursam mestrados e doutorados, candidatam-se a cargos eletivos, viajam pelo mundo defesa de suas lutas, apresentam-se culturalmente no mundo inteiro, buscam executar projetos de subsistência em suas terras, entre outras atividades.
MITOS
Recebem tudo do governo
REALIDADES
Ao menos atualmente, os indígenas não recebem nada, além dos benefícios sociais a que fazem jus todos os brasileiros mais ou menos em suas condições. Recebem aposentadoria rural, bolsa família, auxílio maternidade e outros a que tenham direito. Esses benefícios, em certa medida, cobrem o que eles perderam em espaços territoriais para produzirem os alimentos tradicionais. Garantem também certa dignidade, ao permitirem o acesso a alguns objetos industrializados, que possibilitam maior conforto. Pela Constituição de 1988 e anteriores, o estado brasileiro é responsável pela proteção dos territórios e dos direitos das populações indígenas. O órgão de referência dessa política indigenista, é a FUNAI, que atualmente vem recebendo golpes visando a sua extinção. Além da Funai, contam também com atendimento em saúde pela SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena, ligada ao Ministério da Saúde, que também está ameaçada de extinção. Suas políticas educacionais são coordenadas pelo Ministério da Educação e executadas pelos estados e municípios.
MITOS
São considerados de “menor idade”
REALIDADES
Desde a Constituição de 1988 e legislações posteriores, que acabaram com o estatuto da tutela governamental, os indígenas são plenos cidadãos da república, com todos os seus direitos e deveres. Podem votar e ser votados, processados, presos, diplomados, empresariar, viajar, denunciar e quaisquer outros atos de cidadania. O que eles possuem, além de qualquer outro brasileiro não reconhecido como indígena, é o Direito Originário, um conceito jurídico estabelecido nacional e internacionalmente. Esse direito reconhece a originalidade dos povos nativos na ocupação das terras, posteriormente colonizadas.
MITOS
Tem muita terra para pouco índio. São os maiores latifundiários do país.
REALIDADES
Segundo a legislação brasileira estabelecida a partir de 1973 (Lei 6001 – Estatuto do Indio), as terras indígenas devem ser demarcadas em extensões suficientes para sua reprodução física e cultural. Assim, principalmente na Amazônia e no Centro Oeste, existem algumas terras indígenas com razoáveis extensões. O mesmo não acontece nas regiões sul, sudeste e nordeste, que receberam os impactos mais violentos da colonização, quando não havia legislação favorável nem serviços de proteção, onde as Terras Indígenas são minúsculas.
É preciso lembrar que as Terras Indígenas não são de propriedade dos povos que as ocupam. Elas pertencem à União, para usufruto exclusivo das comunidades indígenas.
Por outro lado, tem-se registro no Brasil de latifúndios particulares que em muito excedem a extensão da maioria das Terras Indígenas.