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KRAHO – OS FILHOS DA TERRA

Luiz Eduardo era daqueles combatentes das causas impossíveis: loucos, catadores de lixo, moradores da periferia, indígenas – os excluídos eram o alvo principal de sua câmera e de seus roteiros. Com seus documentários contundentes, trazia à tona as mazelas sociais para as quais todos queriam fechar os olhos. Envolvia-se emocionalmente com seus personagens documentados e tentava articular as possíveis soluções para seus problemas. Era muito mais do que um professor ou documentarista. Era um humanista por inteiro. Em homenagem ao grande parceiro e amigo LUIZ EDUARDO JORGE, publico especialmente este capítulo do livro “De Longe Toda Serra é Azul – Memórias de um Indigenista”.

CAPÍTULO 28

KRAHÔ – OS FILHOS DA TERRA

Luiz Eduardo Jorge é fotógrafo e documentarista. Ele foi, para mim, um daqueles parceiros que a vida lhe oferece quando você mais precisa.

Eu continuava a atuar pelo Centro de Atividades Indigenistas do Ibrace, de onde, frequentemente, conseguia criar fatos políticos que colocavam a questão indígena em foco, regional e nacionalmente. Todavia, minha grande preocupação continuava sendo o povo Krahô, com o qual jamais havia perdido o contato e a amizade.

Os Krahôs não estavam bem. Sentiam fortemente, em suas aldeias, a política de isolamento perpetrada por Romero Jucá. A Funai havia conseguido cooptar vários jovens líderes emergentes e abafar o movimento de autogestão que havíamos iniciado. Tornara-se muito difícil para os líderes conscientes sair das aldeias e denunciar a situação que estavam vivendo. O abandono deliberado havia levado as aldeias a uma miséria extrema, que era agravada pela baixa autoestima, provocada pela impotência das comunidades em reverter uma situação de submissão, da qual agora elas tinham plena consciência.

Eu sentia, portanto, necessidade de retomar a luta pelo respeito e pela autonomia dos Krahôs, mas não sabia como fazê-lo. A atuação pelo Ibrace era de caráter voluntário e grande parte da minha energia tinha que ser despendida para a manutenção da minha família. De resto, minha entrada nas terras indígenas era proibida e eu me sentia constantemente vigiado em minhas ações.

Luiz Eduardo, de repente, apareceu no Ibrace. Na verdade, ele reapareceu, pois, segundo me relatou, havia sido um dos fundadores do Centro de Atividades Indigenistas, do qual depois havia se afastado.

Travamos uma forte amizade. Em determinada ocasião, ele manifestou o desejo de documentar os Krahôs em foto e vídeo e não demorou muito para que empreendêssemos, juntos, uma viagem às aldeias Krahôs, da forma mais discreta possível.

Foi uma paixão imediata do documentarista pelo documentado. Na viagem, Luiz Eduardo havia levado uma simples câmera VHS, mas foi o bastante para que ele se apaixonasse pela beleza das pessoas, das aldeias e do ambiente da terra Krahô. Ao retornarmos para Goiânia, não falava em outra coisa a não ser em realizar um documentário profissional em vídeo sobre os Krahôs.

Eu não possuía nenhuma experiência ou mesmo conhecimento sobre vídeo, mas Luiz Eduardo se encarregou de me entusiasmar sobre o assunto, e eu acabei vendo ali uma oportunidade de retomar a luta pela autonomia das aldeias.

Elaboramos um projeto para execução do documentário e saímos a campo para captação de recursos, mas não houve forma de consegui-los.  Iniciamos então um processo de execução do documentário de forma inteiramente militante e de resultados imprevisíveis.

Nossa estratégia consistia em criar, em combinação com os Krahôs, determinados fatos políticos-culturais nas aldeias e, a partir daí, convencer uma emissora de televisão a documentá-lo com a nossa ajuda e com a condição de ficarmos de posse do material original após a edição da matéria. Certa feita, conseguimos levar às aldeias Krahôs o líder Raoni, dos Mentutíre, quando ele havia acabado de retornar de sua famosa tournée pela Europa com o cantor Sting e se encontrava no auge de sua fama.

Para que as emissoras aceitassem a proposta de nos entregar os originais de gravação, fornecer-lhes-íamos as fitas virgens U-Matic, o equipamento utilizado por elas na época. Luiz Eduardo, por sua vez, conseguia essas fitas por cessão da Universidade Católica de Goiás, onde ele trabalhava. Ele batalhava também veículos e assistentes de produção pela Universidade, o que ajudaria ainda mais no convencimento das emissoras de televisão a se deslocarem à terra Krahô, localizada a mais de 1.000 km de Goiânia. Invariavelmente, os cinegrafistas dessas equipes se apaixonavam também pelos Krahôs e pela proposta do documentário e acabavam produzindo muito mais do que o estritamente exigido para uma reportagem. Assim, ganhamos grandes parceiros para nossas expedições às aldeias, como Gel Messias, Washington Soares e Jordevar Rosa.

Tínhamos um grande aliado Krahô na empreitada, o Getulio Kruwakray. Ele nos auxiliou no contato com as aldeias, de forma que os Krahôs se envolveram totalmente no projeto e nos ajudavam tanto na produção dos eventos a serem documentados quanto no convencimento das emissoras e das instituições que procurávamos. Nossa proposta era comercializar o documentário e reverter a maior parte da arrecadação para as aldeias, por intermédio de uma associação a ser criada por eles. Assim, o documentário passou a ser a grande esperança, não só de tirar as aldeias Krahôs do isolamento e denunciar a situação de abandono em que se encontravam, mas também de conseguir recursos necessários para sair da dependência na qual elas estavam submetidas.

Cada deslocamento para as aldeias Krahôs representava um monumental esforço de produção, a partir do zero. Eu estava desempregado e o que Luiz Eduardo ganhava de salário na Universidade mal dava para sustentar sua família. Mesmo assim, articulando com pessoas e instituições, conseguimos ir às aldeias Krahô com uma equipe de televisão pelo menos em quatro ocasiões e captar cerca de 20 horas de gravações em vídeo U-Matic.

Na última expedição para captação de imagens, conseguimos convencer uma emissora estatal de Goiânia a nos ceder, inteiramente, os equipamentos e a equipe de gravação por 20 dias, para que completássemos nosso material, com a condição de cedermos a edição final do nosso documentário para uma exibição em primeira mão na emissora. A equipe de seis pessoas chegou à aldeia sem nenhum recurso, nem mesmo alimentação. Por um golpe de sorte, no percurso entre Goiânia e as aldeias, Luiz Eduardo havia travado conhecimento com um candidato a prefeito da cidade de Itacajá e apresentou-se a ele como repórter de uma importante emissora de televisão de Goiás. Foi o bastante para que o candidato, que possuía várias fazendas na região, se interessasse em fazer uma reportagem sobre a sua candidatura. Luiz Eduardo, habilmente, negociou a gravação da reportagem em troca da manutenção da equipe em campo e algumas cabeças de gado para as aldeias Krahôs, necessárias para que elas realizassem as festas que precisavam ser documentadas. A “reportagem” com o candidato foi devidamente gravada, mas jamais veiculada.

Assim, “aos trancos e barrancos”, mas mantendo sempre a esperança de que o documentário seria a redenção das aldeias Krahôs, conseguimos realizar uma primeira edição do material, em nível experimental, em 1992. Para isso contamos também com o apoio da emissora estatal e trabalhávamos, nos finais de semana, até altas horas da noite quando os equipamentos de edição da emissora ficavam disponíveis.

De posse da primeira edição, começamos a circular com ela no circuito de vídeo, até que Luiz Eduardo conseguiu articular uma exibição de lançamento no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Ali ficamos conhecendo o diretor da área de vídeo do museu, Sérgio Martinelli, que se apaixonou pelas imagens e pelo projeto de ajudar as aldeias Krahôs. Ele nos propôs realizar uma edição mais profissional do material, que pudesse ser aceita por emissoras de televisão do Brasil e do exterior.  Obviamente topamos no ato, e Sérgio Martinelli passou a ser nosso mecenas, arcando com despesas com fitas, editores e ilhas de edição, tirando recursos do próprio bolso, sempre na expectativa de que a comercialização do documentário cobrisse, futuramente, esses custos. Eu e Luiz Eduardo nos desdobrávamos para nos deslocar entre Goiânia e São Paulo, a fim de trabalhar na edição, transportando, em várias bolsas, aquelas fitas enormes.

Toda essa trabalheira e dedicação acabaram fazendo com que Luiz Eduardo perdesse definitivamente o apartamento que ele vinha pagando há um bom tempo. Quanto a mim, minha situação financeira (se é que eu tinha alguma) piorou ainda mais, a ponto de não mais conseguir pagar o aluguel da casa onde morávamos e precisar pedir para morar na sede do Ibrace com a minha família. Mesmo assim,mantínhamos sempre forte a certeza de que a comercialização do documentário nos daria a oportunidade de recuperar nossa antiga situação e ajudar as aldeias Krahôs.

A nova edição, agora bem trabalhada tecnicamente e com a narração de um profissional, ficou finalmente pronta em 1993, cerca de cinco anos, portanto, após o início da “produção”. Sérgio Martinelli providenciou cópias em inglês e francês e saiu a campo para comercializá-la.

Não conseguiu nada! Sérgio jamais pôde colocar o documentário no circuito comercial e nunca ganhamos um único tostão com a venda do vídeo, nem mesmo para cobrir as despesas de edição, que não foram poucas.  Segundo os editores das emissoras, nosso material apresentava uma série de problemas técnicos e não passou pelo crivo de qualidade delas. Esses defeitos eram principalmente devido às constantes mudanças de padrões de vídeos adotados na época. Existia o padrão americano (NTSC) e o europeu (PAL-M). Como havíamos captado imagens por meio de equipamentos de várias emissoras, as fitas tinham padrões diferentes, obrigando-nos a fazer transcodificações na hora da edição, o que diminuía a qualidade do material.

Contudo, não se pode dizer que o documentário não tenha ajudado os Krahôs. A sua própria realização foi um alento para eles e para nós, que os apoiávamos, e serviu como arma de resistência e esperança de vencer a luta que travávamos. Depois de finalizado, conseguimos patrocínio para reproduzir cópias em VHS, que possibilitaram a grupos Krahô, por inúmeras vezes, sair das aldeias e, comercializando as cópias de mão em mão, viajar para Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e outras localidades, com o objetivo de batalhar recursos para suas aldeias e denunciar a situação delas.

Em 1993, fomos convidados para participar, com o vídeo, do Festival de San Sebastian, no país Basco (Espanha). Eu e Roboxêt, um representante Krahô, fomos então para a Europa, com todas as despesas pagas pelo festival. Acabamos fazendo um “circuito étnico” pela Espanha por cerca de um mês, a convite de entidades que conhecemos no festival e apoiado por amigos bascos – Pedro, Iosu e Koldo, que havíamos conhecido anteriormente. Participamos também de uma mostra de filmes étnicos em Paris, a convite do produtor do evento, que conhecemos no Festival de San Sebastian.

Tivemos, então, oportunidade de divulgar o vídeo e a luta dos Krahôs e dos outros povos indígenas do Brasil por respeito e autonomia.  O mais importante, entretanto, é que fizemos contato direto com várias instituições apoiadoras das causas das minorias no “Terceiro Mundo”, quebrando, assim, um monopólio exercido por algumas instituições “indigenistas” brasileiras. Esses contatos resultaram, depois, em financiamentos a projetos da entidade “União das aldeias Krahô”(KAPEY), uma associação de todas as aldeias Krahôs que havia sido criada com nosso apoio exatamente para receber os eventuais resultados da comercialização do documentário.

A associação KAPEY continua ainda em atividade, desenvolvendo projetos nas áreas do meio ambiente, educação, cultura, comunicação, segurança alimentar e geração de renda, promovendo a união de todas as aldeias Krahô em torno de um projeto de autonomia física e cultural.

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