Esta é uma entrevista que foi publicada pela Fundação Darcy Ribeiro em 2015.
Pergunta – Você está lançando um novo livro sobre indigenismo. Poderia adiantar alguma
coisa sobre ele?
Resposta – O livro chama-se “Os Desafios do Indigenismo”. É composto por textos sobre os reais problemas que enfrentam a maioria das comunidades indígenas no Brasil. São textos baseados em 40 anos de atuação no indigenismo. São de simples entendimento, sem os rebuscamentos dos trabalhos acadêmicos, mas que dão informações claras sobre as condições de vida dessas populações e as contradições que precisam enfrentar para continuarem resistindo como povos diferenciados.
P. Mas, parece que junto com este, você está relançando outro?
R. Sim, estou publicando também a 2a edição do livro “De Longe Toda Serra é Azul – Memórias de um indigenista”, lançado em 2006. O primeira edição esgotou-se de forma relativamente rápida, considerando que a produção e comercialização da obra foi totalmente independente. O livro tornou-se muito procurado, extrapolando os limites do meio indigenista e antropológico. Impossibilitado de publicar agilmente a segunda edição, o livro chegou a ser pirateado pela internet, onde um site o oferecia em download e impresso, com as mesmas características do original, em dólar. Obviamente, apesar do prejuízo material, dos quais vamos reclamar na justiça, comprova que a obra é procurada pelo público mais amplo. Isso nos deu ânimo para publicar agora, ainda de forma independente, a segunda edição.
P. – Você se auto-intitula e é reconhecido como um indigenista. O que afinal, para você. é que é ser indigenista?
R. – Se eu fosse oriental e escrevesse por diagramas, elegeria o diagrama “indigenismo” o mesmo de “aliança”. Ser indigenista para mim, portanto, antes de tudo é manter aliança incondicional com os povos indígenas.
P. De onde vem esta aliança, já que nem todos a tem?
R. Vem da convivência e do conhecimento. A convivência direta permite que se tenha a empatia com pessoas e comunidades que não perderam o contato com a natureza, permanecendo simples como ela. O conhecimento é adquirido com a vivência com o restante da humanidade e completado com leituras. Isso permite entender que outras formas de viver são possíveis, fora do cartesianismo capitalista.
P. Algumas correntes ligadas à questão indígena alegam que o indigenismo não tem mais sentido, que os próprios indígenas agora estão aptos a exercerem, eles próprios, os papéis de mediadores entre suas sociedades, o governo e a sociedade geral. O que vc. acha desta afirmação?
R. Só afirma isto quem, de fato, nunca praticou o indigenismo. É óbvio que os indígenas estão cada vez mais aptos a praticar o que eu chamaria de “ocidentalismo”. Ocidentalistas, no caso, seria uma forma de “classificar” os indígenas que saem de suas comunidades para apreenderem os aspectos éticos, legais e técnicos que lhes permitam realizar a mediação intercultural entre seus povos e o restante do mundo. É preciso considerar, entretanto, que ao fazer parte de um sistema tribal, muitas vezes sua atuação é limitada à sua etnia, à sua aldeia e à sua rede de parentesco. Trocando em miúdos: Um indígena, por mais preparado que seja, é também um estrangeiro em outra etnia, com a agravante que pode carregar uma grande carga de desconfiança, pelas rivalidades tribais ocorridas no passado. Isto pode ocorrer também no plano da sua própria etnia e até da mesma aldeia. Muitas vezes o indigenista, dependendo da relação
de confiança por ele construída, funciona como um “colchão” amortecedor de conflitos internos, podendo obter maior grau de sucesso em suas iniciativas, por ser um elemento “neutro” nessas sociedades. Eu diria que os indígenas que se especializam na intermediação intercultural, também tendem a alcançar maior grau de confiabilidade e sucesso em nossa sociedade, gerados principalmente, por sua legitimidade. Chega-se então à conclusão que os dois lados devem ser complementares e não excludentes.
P. Vc. É considerado um autodidata. Você poderia definir o que é ser autodidata?
R. Estudei até o segundo grau, apesar de tê-lo completado aos “trancos e barrancos”, por exames supletivos, para não perder a oportunidade de me tornar indigenista, pois assim me exigiam. Parece que atualmente consideram autodidata quem não fez um curso universitário. Na atual fase da minha vida, já terei completado o equivalente a vários cursos universitários, incluindo doutorados e pós-doutorados. Quem aprende fazendo, tende a ter uma visão integrada do mundo, como, aliás, os indígenas tem. Os
cursos universitários dão visões compartilhadas do mundo. Isso sem contar a “soberba” que alguns acadêmicos adquirem, que não lhes deixam enxergar as grandes lições cotidianas à sua volta, geralmente transmitidas por pessoas “autodidatas”. Os grandes mestres que tive, a maioria deles, sábios indígenas e sertanejos, nem sabiam, de fato, o significado da escrita. Uma das coisas que descobri bem cedo é que, para viver neste mundo, pelo menos atuando na área das ciências humanas, é necessário aprender na escola apenas a ler, escrever e fazer as quatro operações. O resto, a vida ensina.
P. – Mas não se pode negar a importância dos estudos acadêmicos…
R. Claro que não, eu também lanço mão deles com frequência. A diferença é que eu vou ao estudo que me interessa, no momento que me interessa. Minhas leituras acadêmicas incluem antropologia, filosofia, geografia, história, pedagogia, botânica, biologia, somente para citar algumas, que recorro para executar meu trabalho. Aqui pra nós, ler uma tese de mestrado ou doutorado é muito chato, com raríssimas exceções. Muitos acadêmicos elaboram suas teses sem ao menos olharem pela janela de suas bibliotecas.
Aprender com o mundo pode ser mais demorado mas é muito mais emocionante, além de que, quando completada, sua “tese” já está testada.
P. Outra adjetivação que se ouve sobre sua atuação como indigenista é que você é “polemico”. Você se considera uma pessoa polêmica?
R. Este é um termo geralmente usado para classificar pessoas que não se situam à “direita” ou à “esquerda” de qualquer ideologia, apenas dizem o que pensam e o que sentem. Deve ser por isso.
P – O que você. Aprendeu de importante com os indígenas, nesses 40 anos de convivência com eles?
R. Isso daria várias “teses”. Na verdade é assunto para um dos livros que pretendo reescrever algum dia. Digo reescrever, porque ele já estava bastante adiantado, quando roubaram meu “lap-top”. É uma grande covardia roubar um “lap-top” de alguém. É como se arrancassem uma parte do seu cérebro, jamais seus neurônios conseguirão fazer as mesmas sinapses. O melhor é dar um tempo, tentar esquecer o que escreveu e começar tudo de novo.
P. Mas vc. não poderia adiantar algumas dessas lições?
R. A capacidade de perdoar, por exemplo. O indígena desenvolveu uma grande capacidade de perdoar o próximo. Ao meu entender, isso vem da necessidade milenar de viver em comunidades restritas, fechadas, onde o indivíduo tem que conviver com as mesmas pessoas, durante toda a vida. É óbvio que desentendimentos, brigas e até mortes acontecem, gerando raivas e até ódios. Mas esses sentimentos são imediatamente enterrados, quando a manutenção da unidade tribal fala mais alto. Geralmente, em
última instância, é quando os anciões, que a tudo observam, chamam as partes em conflito, intermediam e aconselham. Aí, você vê pessoas que até “ontem” estavam desentendidas entre si a andar de mãos dadas, publicamente. Essa capacidade de perdoar se estende até a nós, os “brancos”, dos quais praticamente todos os povos indígenas já sofreram alguma covardia . Nunca vi nos olhos de um indígena o ódio contra os “brancos”, ao menos de forma permanente.
P. Mais alguma lição que você esteja lembrando?
R. Outra coisa que me impressiona muito é o respeito à individualidade que os indígenas possuem. As sociedades indígenas não desenvolveram aparatos de repressão. As crianças são criadas livres, apesar de, em certas fases da vida, grupalmente, sofrerem coerções e castigos físicos, usados como métodos disciplinares. Assim, não desenvolvem a repressão psíquica interiormente, nem sobre as outras pessoas. Os indígenas não são de ficar julgando moralmente os outros, o que também considero uma grande lição.
P. Depois de todo esse tempo atuando junto a comunidades indígenas, em que você. considera que obteve sucesso em seu trabalho?
R. Depois de muitos anos tentando encontrar soluções “de fora para dentro” para os problemas que os indígenas sofrem, descobri que o que dá certo mesmo é tentar ajudá-los a recuperar o que eles perderam. Ou melhor, devolver o que lhes foi tomado pelo processo colonizador. O trabalho de recuperação das sementes tradicionais indígenas de agricultura, que iniciamos junto à etnia Krahô, na década de noventa, foi um dos mais exitosos. Acontece que as sementes estão ligadas à mitologia, à história e à ritualística e a recuperação delas “puxou” também tudo isso. Esse trabalho se expandiu
para outras etnias, inclusive fora do Brasil. Outra iniciativa bastante compensadora a qual participamos é a experiência da “Aldeia Multiétnica”, evento que acontece na Chapada dos Veadeiros, anualmente. Ali, etnias indígenas que eram inimigas no passado e devotavam enormes preconceitos umas contra as outras, conseguem viver harmoniosamente, fazer festa, amizades e passaram a se visitar em suas aldeias de origem. A Aldeia Multiétnica é composta também por grupos quilombolas e até por
uma etnia “branca”, autodenominada “tribo do arco-iris”.
P. A pergunta clássica: Qual, no seu entendimento, será o futuro dos povos indígenas?
R. Talvez melhor seria perguntar qual será o futuro da humanidade, já que estamos todos no mesmo barco e parece que ele está afundando. Às vezes fico pensando se existe uma razão metafísica para a permanência dos povos indígenas no planeta, tamanha o esforço que foi e é feito para exterminá-los física e culturalmente. De qualquer forma, acredito que pessoas que possuem menos dependências de consumo e sabem como extrair alimentos da natureza, podem ter mais chances de sobreviver, apesar de que, no atual estágio das coisas, nada é realmente previsível.
P. – Em sua opinião quais são os grandes desafios a serem enfrentados pelos povos indígenas e seus aliados?
R. – Os desafios são imensos. É muito complicado para povos tribais, terem que conviver com essa nossa sociedade ampla, heterogênea, dominadora, consumista e cheia de contradições. Considero que, vencido o problema da terra, o grande desafio é viver com o que ela oferece, tanto em nível de subsistência quanto de geração de renda. Infelizmente, as novas gerações indígenas vêm sendo cada vez mais atraídas por esta imensa babel de consumo e estão abandonando hábitos milenares de alimentação. Isso, além de trazer dependências de difícil reversão, faz muito mal à saúde. Outro enorme problema de muitos povos indígenas é o uso de bebidas alcoólicas e outras drogas, tanto as legais quanto as ilegais. Devido ao tempo relativamente curto que consomem essas drogas, ainda não desenvolveram mecanismos de controle social para elas.
P. Quem você reverencia e respeita na área indigenista?
R. Darcy Ribeiro, para mim, é uma grande referência, não somente pela sua obra, mas também por ser o único antropólogo que se auto-intitulava indigenista. Gosto também das idéias e das posições de Eduardo Viveiros de Castro. Sou também admirador de indigenistas contemporâneos, ainda em atividade, como Odenir de Oliveira, que acaba de lançar um livro fantástico sobre suas experiências como sertanista, José Carlos Meirelles, o precursor da moderna política adotada com “índios isolados”, José Porfírio de Carvalho, que também publicou um livro sobre o contato dos Waimiri-Atroari na década de setenta, além de Terry Vale de Aquino e Antonio Macêdo, grandes aliados dos povos indígenas do Acre. Reconheço o trabalho do antropólogo Gilberto Azanha, principalmente pela sua atuação na modernização da política indigenista brasileira. Da geração um pouco mais nova, destaco o trabalho do indigenista-arquiteto Renato Sanchez, que desenvolveu conceitos arquitetônicos para construção de residências indígenas e prédios públicos em aldeias.
P. Sabe-se que a Funai realizou recentemente um concurso público e admitiu novos indigenistas. Outras pessoas ingressam no indigenismo por outras vias. Que você espera desses novos profissionais do indigenismo?
R. – O indigenismo republicano foi inaugurado e desenvolvido pelo Marechal Rondon, com a criação do SPI (Serviço de Proteção aos Indios-1910). Obviamente, a política por ele implantada está totalmente ultrapassada, inclusive, em decorrência da atuação da geração de indigenistas da década de setenta, na qual me incluo, que questionou ferrenhamente o conteúdo e a forma “integracionista” da política governamental que ele implantou. Mas Rondon deixou também um grande legado ético-humanista no trato da questão indigena, que jamais deve ser abandonado. Obviamente, o mundo e os indígenas irão sempre evoluir. Assim o que espero é que façam evoluir sempre o indigenismo, sem abandonar os aspectos éticos-humanistas firmados e mantidos pelas gerações anteriores de indigenistas. A meu ver, foi isso que possibilitou a permanência de inúmeros povos indígenas no Brasil.