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A Luta de Raoni contra Romero Jucá

O senador Romero Jucá está hoje no “olho do furacão” dos vergonhosos escândalos de corrupção que assolam a república. Sua aparição na cena pública nacional iniciou-se em 1986 quando, inesperadamente, tornou-se presidente da Funai, mostrando mediatamente a que veio: desarticular os movimentos internos de apoio aos povos indígenas, corromper os líderes emergentes e entregar os recursos naturais das terras indígenas aos madeireiros e mineradores. Raoni, o líder dos Mentutire, ao contrário, é hoje reconhecido como um grande símbolo mundial de preservação da natureza e das culturas indígenas. Neste capítulo que publicamos agora, “A Luta de Raoni contra Romero Jucá”, do livro “De Longe Toda Serra é Azul”- Memórias de um Indigenista”, contamos essa história, ocorrida em 1987.publico especialmente este capítulo do livro “De Longe Toda Serra é Azul – Memórias de um Indigenista”.

CAPÍTULO 26

A LUTA DE RAONI CONTRA ROMERO JUCÁ

Corria o ano de 1987. Romero Jucá ocupava a Presidência da Funai há cerca de um ano e meio. Ele havia se tornado o inimigo público número um dos povos indígenas e dos indigenistas com as medidas que tomara e a política que desenvolvera no órgão.  

Ninguém sabia exatamente de onde ele havia saído. Sabia-se que era apadrinhado político do senador Marco Maciel, de Pernambuco, então vice-presidente de José Sarney. Com o passar do tempo, comentava-se que ele havia frequentado cursos de formação estratégica de direita nos Estados Unidos e no Chile. Falava-se, na época, que ele havia feito esses cursos em companhia de Ronaldo Caiado, atualmente senador, mas que, na mesma época, despontou como líder da União Democrática Ruralista (UDR), uma organização considerada de extrema direita, que defendia o latifúndio. Alguma coisa em comum entre eles realmente deveria existir, pois, não se sabe por que, os clippings diários sobre a questão indígena, produzidos pela Funai, traziam também, invariavelmente, notícias sobre Ronaldo Caiado e a UDR.  

Romero Jucá entrou com força total na Funai. Numa época em que já eram restritas as contratações de servidores públicos, conseguiu colocar dentro do órgão cerca de 1.000 pessoas sem concurso público. Trouxe um sem-número de conterrâneos seus, sem as mínimas qualificações para as funções, e os colocou em pontos estratégicos na administração central, em Brasília, nas superintendências, nas delegacias regionais e nos postos indígenas.  

Dizia-se que Jucá era um profissional frio e calculista. Considerando que seja verdade que tenha frequentado cursos de estratégias políticas, era também bem treinado e competente. Toda a política implantada por ele na Funai seguia uma estratégia definida, que denunciei, na época, valendo-me de um texto que reproduzi e distribuí como pude para todo o país, denominado “O Estado e os Povos Brasileiros”. Sua estratégia se baseava nos seguintes pontos:

-Demitiu e perseguiu os indigenistas reconhecidamente aliados das comunidades indígenas e que, de alguma forma, atuavam em favor dessas comunidades. Foi nessa época que comecei a amargar os quase oito anos de “exílio em meu próprio País”, como meus amigos definiam minha situação, que já relatei em parte;

– Inundou as unidades da Funai, da sede central aos postos indígenas, de pessoas totalmente estranhas às comunidades e às lideranças indígenas, ao trabalho e à causa indigenista;

– Tentou cooptar, com contratações imediatas, as lideranças indígenas emergentes em todas as regiões do País;

– Iniciou um processo de propaganda em veículos de comunicação de massa, nos quais as comunidades indígenas eram divulgadas como fortes, saudáveis e felizes.   Foi veiculado, na época, um comercial da Funai que mostrava imagens das comunidades indígenas do Parque Nacional do Xingu em festa, com trilha sonora  cantada por Roberto Carlos;

– Determinou que nenhum representante indígena poderia ser atendido pelas unidades da Funai sem uma autorização originada nos postos indígenas e daí “carimbada” pelas outras unidades hierarquicamente superiores. Assim, tornou-se praticamente impossível, para qualquer líder indígena, chegar às administrações regionais e a Brasília para reivindicar seus direitos. E, mesmo que conseguisse, encontrava pela frente apenas pessoas estranhas e totalmente insensíveis às suas solicitações e reclamações;

– Transformou as unidades da Funai, principalmente a sede central, em Brasília, em verdadeiras fortificações, com seguranças armados e policiais na porta. Isso intimidava ainda mais as lideranças que tentavam acessar o órgão em busca de solução para seus problemas.

Enquanto criava essa verdadeira “cortina de ferro” para os representantes indígenas, por um lado, e uma “cortina de fumaça” para a sociedade brasileira, pelo outro, Jucá agia nas sombras. E como agia!  

Seu negócio era ouro e madeira. Utilizando escritórios praticamente clandestinos, que funcionavam no edifício “Venâncio 2000”, em Brasília, a turma de Jucá firmava contratos inteiramente ilegais com empresas madeireiras e mineradoras para exploração de minérios e madeiras em terras indígenas. Por esses contratos, as madeireiras e mineradoras ganhavam o direito de extrair determinadas quantidades de materiais das terras indígenas e, em contrapartida, deveriam prestar assistência em saúde, educação e transporte a essas comunidades. Assim, cinicamente, Jucá não apenas não cobrava formalmente nada por essas riquezas, o que, aliás, seria inconstitucional, como repassava para terceiros as funções institucionais do Estado Brasileiro. E, o que era pior, para terceiros que não tinham o mínimo interesse que as comunidades indígenas ao menos existissem.

Uma grande irritação foi crescendo entre os indigenistas e os líderes indígenas mais conscientes, à medida que descobríamos todas essas estratégias e falcatruas perpetradas por Romero Jucá. Aliados a outros segmentos sociais, como as ONGs e o CIMI, os indigenistas ofereceram denúncias ao Ministério Público Federal, que se transformaram em 18 processos por vários crimes contra Romero Jucá. Eles, invariavelmente, não davam em nada.

Incrivelmente, não se sabe a troco de que acordos a imprensa estava totalmente manietada sobre a questão indígena. Praticamente nada se publicava sobre a questão, a não ser para elogiar os feitos da Funai. Por mais que procurássemos nossos antigos aliados jornalistas, nada se conseguia publicar. Todos nós, de alguma forma envolvidos com a causa indígena, sentíamo-nos impotentes e irritados com tudo aquilo.    

A irritação transformou-se em revolta.

Alguns líderes indígenas, ao sentirem que seria praticamente impossível reverter aquela situação por vias diplomáticas, prometiam retaliações violentas.  Raoni, o líder dos Mentutíre, era um deles. Andando com uma borduna, diariamente, pela sede da Funai em Brasília, prometia matar Romero Jucá com um golpe de sua arma assim que o avistasse, em qualquer local. Havia, pois, muita tensão no ar.

Mas Jucá não era bobo e tinha “costas quentes”. Ao perceber o perigo, deixou de ir à sede da Funai e passou a despachar de um gabinete no Conselho de Segurança Nacional, na Esplanada dos Ministérios. Por vários meses nenhum de nós, indigenistas e líderes indígenas, conseguimos avistá-lo pessoalmente. Sua agenda jamais era divulgada, e ninguém, que não fosse de sua estrita confiança, conseguia ter acesso a ele.

Raoni acabou fazendo uma promessa pública que só sairia de Brasília quando matasse ou tirasse Romero Jucá da Presidência da Funai.  

O tempo passava e nada acontecia. Pelo menos três meses já haviam transcorrido desde a promessa de Raoni. No início de sua “campanha”, ele conseguiu reunir um grande número de guerreiros Kaiapós em Brasília, provavelmente no intuito de liderá-los em uma invasão da sede da Funai.

Nessa ocasião, um grupo de Krahôs encontrava-se de passagem por Goiânia e manifestou vontade de prestar solidariedade a Raoni, pois também eles sentiam em suas aldeias o reflexo da política de Romero Jucá. Fomos juntos para Brasília, onde conseguimos nos avistar com Raoni e o grupo de guerreiros Kayapós, aos quais nos colocamos à inteira disposição, e voltamos para Goiânia.

Não soubemos exatamente a razão, mas os Kayapós desistiram da ideia da invasão da Funai, retornando para suas aldeias. Raoni encontrou-se novamente sozinho em sua luta.  

Alguns dias após a nossa visita, recebi um telefonema de Raoni. Inicialmente, ele me perguntou pelos Krahôs e eu lhe informei que eles também haviam retornado para suas aldeias. Pelo telefone, senti-o inteiramente só e sem uma saída para honrar a sua palavra. Com os anos de convivência direta, nós, indigenistas, acabamos sabendo perfeitamente o que é a palavra de um líder guerreiro. Não há hipótese de recuo ou derrota. Guerreiros não podem retornar para seu povo com “o rabo entre as pernas”, após se lançarem à luta. A derrota significa humilhação e o fim da própria condição de líder e guerreiro. Todos os agentes que lidam com a questão indígena deveriam saber disso. Em situações de conflito, quando a decisão de resistir e lutar era tomada, era possível até negociar, mas jamais recuar totalmente do objetivo pretendido.  

Ao mesmo tempo, eu sabia dos perigos em se lançar a uma ação violenta, como a invasão da Funai.  Os tempos eram outros. A opinião pública estava devidamente enganada pela propaganda governamental, não se conseguia publicar nada favorável à questão indígena e o apoio fornecido a Jucá, pelas forças de segurança, era total.  

Não era possível explicar tudo isso a Raoni por telefone e acabei lhe dizendo que no dia seguinte iria procurá-lo em Brasília.

Encontrei-o praticamente só em uma chácara que pertencia à Funai nos arredores da cidade.

Depois de conversarmos um pouco sobre toda a situação, fiz-lhe uma proposta: eu faria uma viagem que duraria cerca de uma semana. Nesse período, ele não deveria tomar nenhuma iniciativa em relação à Funai e a Romero Jucá. No meu retorno, diria a ele o que estava planejando. Começava, assim, a se executar um plano que havia concebido na viagem entre Goiânia e Brasília.

Raoni aceitou minha proposta e, nessa mesma noite, embarquei para Curitiba de ônibus. Assim que cheguei lá, fui direto ao que havia ido procurar: o apoio do jurista Carlos Frederico Marés, aliado das populações indígenas e que, na época, estava ocupando o cargo de Secretário de Cultura do Estado do Paraná.  

Marés me conhecia de nome e me recebeu muito bem. Contei-lhe a situação das falcatruas de Romero Jucá, das quais ele, obviamente, já tinha conhecimento, e da situação em que Raoni se encontrava. Fiz então a proposta que me levara até ali: realizar um evento “cultural” com a presença de Raoni, em Curitiba, onde ele, “inesperadamente”, denunciaria os contratos ilegais que Jucá vinha celebrando com madeireiras, cujas cópias havíamos conseguido.

Marés topou a proposta e marcamos a data do evento para cerca de 15 dias após aquela visita, período em que manteríamos contato.  

Na mesma noite segui viagem para São Paulo, onde cheguei ao amanhecer.

Em São Paulo, com a ajuda da antropóloga Maria Lucia Brant, a Malu, conseguimos articular uma recepção para Raoni pela Assembleia Legislativa do Estado, com a ajuda de deputados do PT. A recepção foi programada para acontecer imediatamente na sequência do evento que aconteceria em Curitiba.

De São Paulo fui para o Rio de Janeiro, onde entrei em contato com o deputado Carlos Minc, ativo militante de causas ambientalistas, na época ligado ao Partido Verde (PV), que também topou realizar um evento cultural na cidade, com a presença de Raoni, do qual ele se encarregaria da produção.

Retornei então a Brasília e fui procurar novamente Raoni. Havia cumprido o prazo que dera a ele, apesar de ter feito todo esse percurso de ônibus, conseguindo as passagens por meio de doações em cada um dos lugares por onde havia passado.   

Contei finalmente a Raoni o plano e o que havia sido articulado. A estratégia consistia em aparecer em eventos pretensamente “culturais”, que contariam com a presença de autoridades e da imprensa, explorando o enorme prestígio do qual Raoni desfrutava. Ele deveria levar um grande número de cópias dos contratos ilegais de Jucá e, no momento em que ele julgasse apropriado, deveria denunciá-los e distribuir cópias à imprensa e às autoridades.

Senti os olhos de Raoni brilharem, e ele topou, no ato, todo o plano.

Saí então a campo para conseguir as passagens para os deslocamentos de Raoni. Do Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos (INESC), que possui sua sede em Brasília, consegui, por recomendação do Ibrace, o apoio logístico do qual necessitava: um escritório com telefone e fax liberados, e ali armei o meu “QG”.

Não foi tão fácil conseguir as passagens aéreas para todo o percurso que Raoni e sua comitiva (havíamos decidido convidar dois líderes Xavantes para acompanhá-lo). Mesmo com a fama e o prestígio de Raoni, os parlamentares a quem eu recorri para que cedessem suas passagens funcionais não queriam muito abrir a guarda. Afinal, com muita insistência e valendo-me de todas as recomendações possíveis, praticamente na última hora, quando cheguei a temer pelo sucesso do plano, consegui fechar todo o circuito e colocar Raoni e sua comitiva em um avião rumo a Curitiba.

A coisa aconteceu como o previsto, com exceção do evento programado para o Rio de Janeiro, que acabou sendo cancelado na última hora.

Em pleno evento em Curitiba, cercado de autoridades locais e da imprensa, Raoni sacou os contratos ilegais da Funai e “deitou o pau” em Romero Jucá.  E não quis falar de outra coisa, por mais que o perguntassem. Assim, naquele dia, assisti exultante, em Brasília, a uma matéria no Jornal Nacional, em que Raoni atacava Jucá e mostrava os tais contratos.  

Tudo se repetiu em São Paulo durante a recepção na Assembleia Legislativa. Novas notícias, novas declarações de Raoni, novas cópias dos contratos circulando entre jornalistas e autoridades. Tínhamos conseguido, finalmente, furar o bloqueio da imprensa.  

Foi o início do fim de Romero Jucá na Funai. Ele conseguiu se manter ainda portrês ou quatro meses após esses episódios, masfora desmascarado. Raoni continuou aguardando em Brasília a sua queda, conforme prometera. Ele sentiu que havia desferido um golpe mortal em Jucá, mesmo que tivesse “deitado o pau” neleapenas em sentido figurado.

Jucá acabou “caindo para cima”. Virou governador “biônico” (nomeado) de Roraima, onde, promovendo-se como protetor dos garimpeiros que invadiam as terras dos Yanomamis, elegeu-se para sucessivos cargos públicos, tornando-se inimputável. Dos processos impetrados contra ele pelo Ministério Público Federal, jamais se soube seus paradeiros.

Sempre fui de opinião que Romero Jucá deveria ter sido processado por algum tribunal internacional, por crime de lesa-humanidade. Situações sociais degradantes e devastações do meio ambiente, como contra os Yanomamis, em Roraima, os Kayapós, no Pará, os Cinta-Largas, os Suruis e os Ñambikwaras, em Rondônia, entre outros casos, acontecem ainda hoje em consequência desses contratos ilegais de exploração de madeira e ouro das terras indígenas firmados por Jucá.

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